A última tentação
– Estás a sangrar – disse-me girando o indicador no ar com uma expressão de repúdio.
Cortei-me a fazer a barba, o que, numa manhã de sábado, me deixa mais desolado e vulnerável do que em qualquer outro dia. Ao sábado levanto-me quando já não me apetece ficar na cama e posso fazer a barba e tomar o pequeno almoço sem pressa, enquanto gravo no meu podcast, intitulado “Re barba”, um qualquer áudio de empatia com todos os homens que raspam a cara com um gume de aproximadamente 0,00006mm de espessura.
“Todos os dias caímos nos mesmos erros; aceitemos isso como inevitável..." Comecei assim o novo tema. Já sabia que ia sair de casa e, numa nova recaída, caminhar até ao restaurante, com a cara esfacelada. “…a única coisa que podemos evitar é ficar no chão depois de cairmos”.
Cheguei cedo ao restaurante, quando ainda só havia uma mulher debruçada sobre dois pratos e ninguém do outro lado da sua mesa, e escolhi o lugar mais próximo da janela cuja vista abre para a Avenida dos Pescadores.
Natália fez questão de sacudir a cabeça antes de anotar o meu pedido e entregá-lo à empregada de mesa. Ela é a minha maior frustração amorosa; por todas as traições e por se desculpar com o facto de nunca ter conseguido dar-lhe a intensidade do prazer que ela sempre me proporcionava. Por isso, de todos os restaurantes do Montijo este é o único onde nunca deveria entrar nos dias de recaída, só que nunca consigo.
No meu relacionamento com mulheres tento ser, agora, tão cuidadoso quanto no uso de uma lâmina cuja características desconheço, ainda assim, sou quase sempre desastrado, como nessa de manhã. Exatamente por isso, reservei o meu primeiro sorriso do dia para a empregada de mesa, que me veio trazer o prato e com quem nunca troquei mais do que alguns "Obrigado". Natália, a dona do restaurante, registou o facto e reprovou-me o sorriso com um olhar de desilusão, tal como eu, ao espelho, depois de me cortar.
Levantei os talheres, observei o gume grosseiro da faca de peixe e baixei-a para despedaçar a truta.
No fim da refeição, com apenas uma mesa vaga no restaurante e todas as outras ocupadas por duas ou três pessoas cada, à exceção da mesa da cliente solitária, a quem já haviam retirado o segundo prato, dispus-me a observar a mulher. Cruzámos o olhar sob a vigilância de Natália, não exatamente na qualidade de dona do restaurante, que se fingia divertida com a minha falsa sedução. Ambos sabíamos que era por si que ali me encontrava. De qualquer modo, a mulher comia, sem prazer, alguns fios de massa salpicada de queijo, com gestos lentos e uma expressão tão ausente quanto o seu companheiro. Tinha sobre a mesa um copo de vinho tinto, que permanecia cheio, intocado.
Apesar da minha intrusiva solidariedade, a mulher, ainda mais do que Natália, persistia em ignorar-me. Desisti e voltei-me para a janela. O rosto ainda me ardia, sobretudo no contorno esquerdo do queixo e no maxilar do mesmo lado.
Lá fora fazia vento. As folhas, arrancadas das árvores, enfileiravam-se ao longo do separador da Avenida e rodopiavam sob os bancos de madeira. O vulto de um homem passou à frente da minha janela e veio espreitar o restaurante através do burburinho, que se fora instalando com a chegada dos clientes.
A Natália esboçou de novo um sinal de asco, desta vez para o recém-chegado, e abanou a cabeça, igualmente em sinal de negação. Olhei instintivamente para a mesa que restava vazia, mas o homem havia dado meia volta antes que eu pudesse intervir.
Talvez tivesse sangue na cara, pensei cinicamente, ou já tivesse dormido com ela antes. Talvez fosse um dos velhos casos que ela mantivera enquanto vivíamos juntos. Procurei-lhe os olhos, mas a cliente solitária já a havia reclamado para si. Então, retornei à janela e questionei-me sobre o que deveria pedir para sobremesa.
O vento tornara-se rebelde. Gosto desta época de fim de outono.
De repente, apercebi-me de que, o homem que tinha vindo à procura de um lugar, estava agora sentado num dos bancos do separador da Avenida. Incontáveis pequenos dedos de chuva começaram a bater nos vidros da minha janela. A súbita ausência do burburinho de fundo chamou-me a atenção. Olhei em redor e vi Natália, ainda de pé e ainda junto da mesa ocupada pela cliente solitária, mas já não consegui recuperar o eco da discussão.
A minha ex-amante, na qualidade de dona do restaurante, balançava o olhar entre o homem sentado lá fora, à chuva, e a indignação da cliente, que, por fim, se levantou e empurrou a mesa com as ancas, fazendo oscilar o copo, que não chegou a cair, mas entornou algum vinho sobre a toalha branca, depois, precipitou-se para a porta e atravessou a estrada.
Natália recuou até ao balcão, com passos tensos, mas controlados.
Pela janela, vi a cliente debruçar-se sobre a cabeça do homem, agora com as costas curvadas. O vento sacudia-lhes o cabelo e a chuva fustigava-os sem grande compaixão. As suas palavras fizeram-no erguer-se e segui-la de regresso ao restaurante, onde sobre o silêncio dos outros clientes, eu conseguia ouvir a chuva fustigando a minha janela.
O homem sentou-se e alisou o cabelo molhado, puxando-o para trás. A mulher não. Em vez de compor os cabelos desgrenhados, preocupou-se unicamente em colocar-lhe à frente o seu próprio prato, com o resto da massa, e fazê-lo aceitar das suas mãos os talheres que ela antes usara. O homem assentiu com um gesto tímido de agradecimento e começou a comer. Só então, ela sentou-se e reclamou uma mousse de chocolate, num tom suficientemente alto e triunfante para abafar as pancadas da chuva.
Natália, ainda na qualidade de dona do restaurante, permaneceu impassível durante alguns segundos, junto ao balcão, pressionada por todos os que haviam deixado de mastigar para seguir o desfecho da querela.
– Para mim também – ataquei-a corajosamente de pé, embora num tom demasiado alto, que me surpreendeu mais do que aos que me olharam.
Observei-a encurralada contra o balcão, enquanto, satisfeito, sentia o rubor da vingança aflorar-me a face e, consequentemente, um fio de sangue escorrer-me do maxilar para o queixo.
Natália olhou-me sem raiva e cedeu, com um sinal de consentimento para a empregada, autorizando-a a servir-nos a sobremesa.
A cliente olhou o seu companheiro, que pegou no copo e bebeu todo o vinho que nele restava de um só trago.
Natália, em parte na qualidade de dona do restaurante, em parte na qualidade de ex-amante que me traíra demasiadas vezes, antes que eu desse por isso em tempo útil, aproximou-se da minha mesa com um guardanapo na mão e pressionou-me o rosto, deixando ficar sobre a mesa a chave do seu apartamento.
O homem em questão havia-se separado da sua melhor amiga alguns meses antes, disse-me nessa noite, na qualidade de minha ex-amante. Os dois filhos de ambos, já adolescentes, decidiram permanecer com a mãe e quase todos os amigos do ex-casal fizeram o mesmo, desprezando-o. Jurou-me que não sabia, até essa tarde, que a mulher com quem ele viera encontrar-se e que o fora buscar à rua, era sua amante. Aparentemente ninguém o sabia até ao incidente dessa tarde, em que ela decidiu revelar tudo. Disse que a determinação da mulher, mais do que a sua honestidade, a impressionara e fez pensar em nós. Disse mais qualquer coisa cujo sentido não já consegui decifrar, porque nos despimos e deitámos à procura de algo que nunca antes, quando vivíamos juntos, havíamos encontrado.
Não conhecia o seu gemido de prazer. Por isso, estranhei o aperto dos seus braços enquanto sacudia o corpo num espasmo prolongado. Eu nem sequer me havia esforçado...
Esperei silenciosamente até madrugada para me levantar, sem pressa, como se fosse voltar a ser sábado. Baixei-me e tateei o chão à procura da roupa amarfanhada aos pés da cama.
– Vais-te embora? – ouvi-a murmurar na qualidade de amante surpreendida. Nunca nos nossos reencontros, depois de separarmo-nos, eu o fizera sem a sua indicação.
– Vou.
Mesmo sem a ver, para lá da imensa escuridão que nos separava, percebi a baça deceção nos seus olhos ocultos.
– Tens alguma coisa para fazer de amanhã? – interrogou-me um tom insistente que também lhe desconhecia.
Hesitei antes de responder.
– Tenho.
– O quê? – tornou Natália.
E de repente, percebi, desde que me cortara nessa manhã de sábado, que sabia que ela me iria fazer aquela pergunta e me preparara secretamente para lhe responder:
– A barba.